Albert Camus- “O Estrangeiro”
- BrunaSanta
- 27 de jan. de 2022
- 3 min de leitura
Atualizado: 29 de mai. de 2022
Clássicos, obras que marcam todos os que têm a oportunidade de os conhecer, de mergulhar nas suas histórias, nas peripécias de arrojadas e extravagantes técnicas, expressões, personagens, mundos e realidades. Nem todos nós gostamos de clássicos, mas os apreciadores, de alma e coração, guardam-os sempre com carinho, envolvendo-se em vidas mais ou não tanto macabras, estranhas, numa perfeita simbiose. O leitor precisa de ler, sentir, viver tal como a obra precisa de ser lida, vivida, marcar memórias e deixar um pequeno rasto para mais tarde revisitar. É inevitável experimentar os clássicos da literatura, tal como é impossível não beber um copo de água quando a sede nos assola.

Entre tantas personagens com as quais já contactei no meu percurso literário encontrei a mais enigmática, verdadeiramente complexa: Mersault. Em qualquer um perdura a complexidade do frenesim em que roça o absurdo, abarcando filosofias do existencialismo, com especial destaque para a implacável e meritória descrição de Jean-Paul Sartre.
Albert Camus, com uma escrita curiosa, conduz todo aquele que segue o seu fluxo do pensamento e consciência a uma lúcida reflexão, por vezes, transformadora e intrigante. Não são necessárias mais do que poucas cento e cinquenta páginas para indagar o público em geral. A morte e a vida são o ciclo natural ao qual o ser humano se subjuga, para alguns apenas o seu corpo terreno, para outros alma e a carne coberta pela estrutura óssea, pouco ou nada insignificante no Juízo Final.

Constituindo uma trilogia contemporânea da Segunda Guerra Mundial, “O Estrangeiro” é a introdução ao que se vivia na época, seguindo-se de uma explicação vincada em conceitos controversos, em “O Mito de Sísifo”. A edição que trago hoje comigo é a primeira e pertencia à tia Mariazinha que a adquiriu em fevereiro de 1978. Dada aos prazeres da leitura e com a sua vida dividida entre Portugal e Espanha, proporcionou o desenvolvimento do culto dos livros e a curiosidade fervilhante no seu legado. Avó, mãe e filha partilham agora uma paixão desenfreada num elo de ligação enraizado e cultivado.
A personagem principal já não terá tido tanta sorte, perdurou apenas uma série de questões filosoficamente desconcertantes. Em comportamentos e atitudes que, à partida, poderão soar estranhos, é um mero espectador da sua vida, pois cada dia é o seu presente e nada mais existirá além das consequências de ações largadas à menor deliberação. A morte da sua mãe é o fardo que carregará até ao tribunal em que se decide o seu fatídico ou esperançoso destino, tão insignificante, pois, só mais tarde recordamos que os nossos dias sempre estarão contados, 20 ou 5 anos serão tão somente insignificantes ao irremediavelmente acontecimento final. Nada restará, nem mesmo as memórias, mais tarde perdidas no espaço outrora ocupado por almas vivas. Seremos conscientes do que aguarda o último suspiro, mas não daremos por acabado o último raio de sol, porque fica pelas veias que nos percorrem a inquestionável incerteza do fim. Encenações, acusações, palavras, em última instância, proferidas em vão pela justiça.

Para que possam delinear o raciocínio do escritor, convido-vos a perscrutar uma citação em que a personagem principal expressa a sua revolta e indignação perante o funcionamento da grande máquina: “Então, não sei porquê, qualquer coisa rebentou dentro de mim. Pus-me a gritar em altos berros e insultei-o e disse-lhe para não rezar e que, mesmo que houvesse um inferno, não me importava, pois era melhor ser queimado no fogo do que desaparecer. (…) nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher.(…) Eu parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. (…) Vivera de uma dada maneira e poderia ter vivido de outra dada maneira.(…) E depois?(…) Que me importava a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importava o seu Deus, as vidas que se escolhem, os destinos que se elegem, já que um só destino podia eleger-me a mim próprio e, comigo, milhares de privilegiados que diziam, como ele, ser meus irmãos?”
O sentimento do absurdo não é a noção do absurdo.(…) O Estrangeiro (…) mergulha-nos no clima do absurdo; vem de seguida o ensaio iluminar a paisagem”
Para concluir “Qual será o significado autêntico da morte? Não serão as nossas emoções apenas o precipício em que involuntariamente caímos, deturpando todo o nosso ciclo?
Um livro poderoso, uma obra maestra, um leitor embutido na realidade assustadora.


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