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A sombra do prédio circundante

Dia após dia, quer seja inverno, outono ou verão, encontro a sombra do prédio circundante. Está lá, oculta e silenciosa. Mas, silenciosa permanece. Vai crescendo, aumentando, até que brota uma figura insólita, artificial, diria. Provém da natureza, porém, como poderia? Artificial nas suas medidas, proporções e mentiras. É em demasia gigante e em escassez importante. Não obstante, as raízes da sua árvore residem na aridez daquela terra. Ramificam-se em letras que por sua vez arquitetam palavras. Palavras que desenham significados. Significados que projectam sonhos.

Os vocábulos mais simples e importantes nos alicerces do seu tronco robusto, as frases emanam o interior do aroma amadeirado e as rimas são tão somente as cerejas da vivaz edificação a que chamamos casa. 


A sua efemeridade transtorna-me, consome o meu interior, corrompendo as minhas veias de enchentes de p a l a v r a s. Diluídas no mar, cujo fim se trata do vazio, da percepção humana. Não se alcança o que a água salgada procuraria sem derramar lágrimas da sua pureza, incólume sacrifício coberto pelos remendos das palavras. 


Palavras! Não me cessa esta obsessão por pronunciar, ousar indiscriminadamente divagar no vosso céu estrelado, caminhar no percurso traçado para inevitavelmente não parar de vos parafrasear. Incansavelmente continuar, sem lograr o objetivo para vós idealizado. 


Letras misturadas em concordância ditongal, não me atordoem a visão do cenário atual, não me engodem com dimensões universais. 


Ludibriaram-me com a consideração a quem prometiam, inebriaram-me com os duplos sentidos e configurações cintilantes. 


O brilho desvaneceu, as palavras envelheceram, as cerejas foram colhidas, os ramos aqueceram almas, o tronco nu e frio perdeu o seu sentido. A manta da árvore foi tolhida e com ela a esperança.


Na sombra do prédio circundante ainda visualizo as memórias, ainda sinto o calor das passagens por aquelas palavras, ainda recordo os contextos e, por momentos, perco-me, outra vez, no seu emaranhado intenso e fragmentado.



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