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A última pétala, já murcha

Quanto mais temos, mais podemos perder. Quanto mais sonhamos, mais ambicionamos, almejamos, maior será a desilusão que nos espera, eventualmente, quando tudo acabar, quando tudo se resumir a um curto espaço de vazio, escuro, frio. Sinto-me distante de tudo e de todos, como se já absorvida na realidade em que o ritmo da bagagem é idêntico ao das folhas que caem serenamente ou ao ruído do fluxo do rio, cada vez mais seco e próximo da sua extinção. Cada vez mais perto da minha vaga viagem ao passado e às memórias mais ou menos felizes que agora de nada valem. Estou sozinha. Nascemos e morremos sozinhos, consideremo-nos sortudos se tivermos tido a oportunidade de passar tempo a contar pétalas de malmequeres sem que os pensamentos impedissem de aproveitar o momento.


No outro dia subi as escadas vagarosamente, num murmúrio de lamentos, em tons mais baixos, para não incomodar os pensamentos que agora me assolam a cada hora que se atravessa no meu corpo rígido e pronto. Para uma fase, erroneamente retratada como pacífica. De facto, não o devem ter dito à beira da morte, quando tudo irrompe e não há como parar. É mais forte que os batimentos cardíacos até que apunhala os órgãos e sucumbimos ao último suspiro.


Encontrei a tua carta há alguns anos. Estava a visitar o sótão, agora jardim de pó, vazio, sem vida, saudoso. Curiosamente, aqueles anos viriam a ser os meus últimos a cores.


Nunca te consegui escrever enquanto vivias nesse teu olhar doce e quente. Estava amedrontada, numa figura de criança perturbada. Talvez tenha sido por isso que fui consumida por dentro, por essências sombrias que nem agora me abandonam.


Não te escrevi porque sempre pensei que não era necessário. De que serviria uma carta de arrependimento quando não havia já nada a fazer? Incorporaria a tua força de vontade e coragem.


Não era necessário escrever enquanto permanecias alegre e vivaz, antes de saberes os eventos futuros. O olhar frio, distante, mortificado. Não o fiz. Mas não me arrependo.


Os sessenta anos que me perfazem são feitos de muito poucos arrependimentos, dúvidas ou insatisfações. Sessenta anos e parecem quase cem, o rumo que a vida toma!


Sempre fui resoluta, sempre soube decidir consoante as circunstâncias, apesar de ter tido algumas fragilidades. Porém, pertencem a todo o ser humano e, por isso, na minha arrogante postura, considero-as insignificantes.


“A idade é um posto” e até lá chegar ninguém sabe como realmente é. É mortal para os fracos, mas um inferno para os teimosos. Aceitar que a melancolia nos invade de quando em vez é aceitar a derrota e perseverar, criar momentos melhores, é ser resiliente. “São ossos do ofício”, lições aprendidas e, portanto, recordadas com carinho.


Não lamento nada do que te disse, apesar da tua amargura perante determinadas desavenças que só nós saberemos recordar. Só eu, agora. Neste pequeno bilhete, porque nunca terá o que te queria ter dito, permanece apenas uma mera tentativa.


Ainda que seja um destino definitivo, não me importo. Não me resigno. É o ciclo natural da vida, mas também me preocupo, decerto. Preocupo-me com a minha reação, com a espontaneidade que terei quando o souber. Que tudo estará mais próximo e mais longínquo. Que será um ruído ensurdecedor e brusco, mas, no final, tudo acaba.


Passei muito poucos meses contigo, mas acredito terem sido suficientes, não quero pensar o contrário, insisto em me conformar com o que tive, a relutância levar-me-á consigo, ainda que camuflada e na consciência pesada. Quero uma passagem breve, mas possível, para que possa ouvir a tua voz uma vez mais.

Bruna Santa


 
 
 

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